sexta-feira, setembro 23, 2005

Viagens - Parte 4 - ainda Fogo

Este devia ser o dia em que depois dum rápido pequeno-almoço desceríamos o vulcão para regressar à civilização, vulgo cidade da Praia na ilha de Santiago. Mas como em CV nunca se pode ter nada como certo, as coisas não correram bem assim. Ao longo destes meses habituei-me a não programar nada com muita convicção ou antecedência e a não entrar em stress sempre que ocorressem atrasos, mas neste dia tive mesmo que testar a minha paciência e verificar se tinha efectivamente aprendido a ser uma pessoa descontraída…
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Levantámo-nos por volta das 7 horas da manhã o que não é muito cedo para Cabo Verde, mas é muito cedo quando estamos num sítio frio… levantei-me cheia de energia e convencida de que seria capaz de tomar um duche, tinha metido na cabeça que a água nunca poderia parecer-me mais fria do que a água da serra da Estrela, mas depois de me atirar para baixo do chuveiro, percebi que tinha sido uma má ideia… o duche não passou de um conjunto de salpicos gelados sobre o corpo ainda semi-adormecido, e para completar uns guinchos de dor. Vesti o roupão branco, estilo hotel de 5 estrelas, e voltei a correr para o quarto onde me vesti com camadas de roupa que iria tirar ao longo da descida.
Mais uma vez esperava-nos uma magnífica refeição, desta vez com direito a uma cachupa guisada especialmente para mim (favor especial das cozinheiras que a trouxeram de casa).
Depois de reconfortadas, despedimo-nos de destes novos amigos que fizemos (empregados, dono, hóspedes e guias), e entrámos na pick-up do Pierre que nos levaria a S. Filipe, lá bem em baixo.
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Durante o caminho a conversa passou pela origem das pessoas de Chã das Caldeiras (descendentes do Montrond), pela origem do crioulo e pelas diferenças linguísticas de ilha para ilha, e teve que acabar com as histórias fantásticas das famílias gigantes à melhor moda Cabo-verdiana (uma montanha de filhos de mães e pais diferentes). Para além do Pierre tínhamos o Carlos como companhia na viagem (guia da subida ao vulcão), que acabou por nos contar as melhores histórias que conhecia, enquanto deixávamos para trás o gigante que cospe fogo.
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Após uma hora de viagem chegámos a S. Filipe, decidimos ir almoçar ao Le Bistro, mas desta vez para provar as pizas caseiras com produtos da terra (atum e queijo). Enquanto saciávamos a fome começou a chover, e não foi pouco, molhando as ruas e as escadas de saída do restaurante, escusado será dizer para quem me conhece, que eu devo ser a pessoa que mais tropeça e se desequilibra enquanto anda, e como tal não é de estranhar que tenha baptizado o chão de S. Filipe com um a fenomenal queda… Só caí de costa pelas escadas a baixo, quase rebentei com o pulso esquerdo que ainda passados 3 meses me continua a doer, e sinceramente não sei como não parti a coluna ou o pescoço ou mesmo a cabeça, tal foi a brutalidade com que embati contra as escadas molhadas… mal me levantei percebi que ainda estava viva, por isso seguimos viagem já com alguma dificuldade. Uma despedida em grande…
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Dirigimo-nos para o aeroporto com as bagagens às costas, num dos muitos táxis que circulam por estas bandas. Depois do check-in e já com os cartões de embarque na mão, aguardámos tranquilamente na sala de embarque. A pista estava vazia e o avião tão esperado tardava em chegar. A chuva que não parava de cair decidiu então mostrar quem é que manda e começou então a chover torrencialmente, como nunca esperei ver neste país. Em sussurro vão chegando aos nossos ouvidos as histórias dos locais que dizem que com chuvas assim os aviões não aterram e como a pista não é iluminada só com muita sorte ainda saíamos dali hoje.
Chega então o anúncio oficial: o voo está atrasado 2 horas. Aguardámos pacientemente, afinal os atrasos são muito habituais na TACV e o tempo lá fora não estava para brincadeiras. Quando chegou o segundo aviso, ainda chovia, por isso não poderiam ser boas notícias… mas em vez de atraso confirmado, desta vez era mesmo o cancelamento do voo.
Digo-vos meus amigos, a partir daquele momento comecei a sentir mesmo a insularidade… senti na pele o que é viver numa ilha. Estava presa no Fogo, uma ilha lindíssima é verdade, mas na qual já não tínhamos nada que fazer.
Depois de discutir com o chefe de escala do aeroporto lá conseguimos fazer uns telefonemas para a Praia a avisar do sucedido e a cancelar o alojamento que o Emanuel tão prestável tinha ficado de tratar para nós. Com tanto protesto conseguimos também que nos colocassem numa pensão para passar a noite sem pagar – Pensão Blue Sky, cujo proprietário é o próprio chefe de escala… está tudo em família.
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De regresso a S. Filipe, mais uma vez, lá vagueámos pelas ruas já nossas conhecidas, ora para cima ora para baixo, a pensar o que poderíamos ainda fazer. Depois de comprar um bloco de desenho, uns lápis de cera e umas barras de plasticina para nos entretermos, dirigimo-nos ao famoso SeaFood, o tal com vista para o cemitério, para passar o resto da tarde. Já sem chuva, e com o sol ainda a brilhar (afinal sempre poderíamos levantar voo) sentámo-nos numa mesa e começámos a fazer aquilo que não fazíamos à anos… descansar.
Bebíamos um sumo de goiaba daqueles deliciosos que vêm do Brasil (marca: Vale ou Mais), desenhávamos nas folhas do caderno da escola e fazíamos figuras em plasticina. Já não me lembrava da última vez em que estive parada a fazer coisas que não interessam para nada nem para ninguém… foi estranho, mas soube muito bem.
A plasticina transformou-se no arquipélago de Cabo Verde a uma escala reduzidíssima, e ainda em dois crioulos um do sotavento e outra do barlavento que viajavam no avião miniatura que nos havia faltado nessa tarde.
Entretanto chegou o Carlos (o tal guia do vulcão que tinha descido connosco), trazia na mala um tabuleiro de xadrez, e desafiou-me para jogar. Já não jogava desde… já nem me lembro, acho que a última vez ainda foi em Moçambique, terá sido em 1992? Já lá vão 13 anos… e isso revelou-se no jogo… que não me correu nada bem. Mas não me importei… soube-me bem jogar, soube-me bem aqueles momentos, estar ali sem stress, e sem pressão para conquistar algo… estava só a passar o tempo num sítio calmo…
Sem me levantar da cadeira pedimos uma garoupa grelhada para jantar… deve ser o meu peixe preferido, do qual comi praticamente todas as semanas sem me enjoar. Depois de uma tarde que parecia infindável, a lua apareceu para mostrar que já eram horas de descansar… afinal agora parecia cedo demais para esta parte da viagem acabar…
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Mas ainda havia uma surpresa por revelar. O Carlos, discretamente, aproveitando um momento em que a minha mãe e a minha irmã não estavam por perto, decidiu revelar o motivo da sua vinda para S. Filipe nesse dia… Tinha-se apaixonado por mim, e queria pedir-me para pensar em ir morar com ele… Eu nem estava a acreditar no que ouvia, mas a sinceridade da sua voz e o brilho dos seus olhos, fizeram-me acreditar em cada palavra desta declaração de amor… Foi um momento lindíssimo, e ficará para sempre no meu coração.
Se há uma coisa em que o povo cabo-verdiano me surpreendeu foi na pureza dos seus actos e sentimentos… na generalidade não fazem jogos, e são honestos, e por isso tocam fundo no coração.
Claro que a proposta do Carlos era linda, mas era uma proposta que eu nunca iria aceitar, mas a forma como se revelou nesta conversa fez com que ficasse marcado na história da minha vida em Cabo Verde, e será sempre um amigo que vou prezar.
E já que falo de ti Carlos, espero sinceramente que já estejas melhor e que consigas voltar ao trabalho que adoras e a viajar como estavas a planear.

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