sexta-feira, setembro 23, 2005

Viagens - Parte 4 - ainda Fogo

Este devia ser o dia em que depois dum rápido pequeno-almoço desceríamos o vulcão para regressar à civilização, vulgo cidade da Praia na ilha de Santiago. Mas como em CV nunca se pode ter nada como certo, as coisas não correram bem assim. Ao longo destes meses habituei-me a não programar nada com muita convicção ou antecedência e a não entrar em stress sempre que ocorressem atrasos, mas neste dia tive mesmo que testar a minha paciência e verificar se tinha efectivamente aprendido a ser uma pessoa descontraída…
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Levantámo-nos por volta das 7 horas da manhã o que não é muito cedo para Cabo Verde, mas é muito cedo quando estamos num sítio frio… levantei-me cheia de energia e convencida de que seria capaz de tomar um duche, tinha metido na cabeça que a água nunca poderia parecer-me mais fria do que a água da serra da Estrela, mas depois de me atirar para baixo do chuveiro, percebi que tinha sido uma má ideia… o duche não passou de um conjunto de salpicos gelados sobre o corpo ainda semi-adormecido, e para completar uns guinchos de dor. Vesti o roupão branco, estilo hotel de 5 estrelas, e voltei a correr para o quarto onde me vesti com camadas de roupa que iria tirar ao longo da descida.
Mais uma vez esperava-nos uma magnífica refeição, desta vez com direito a uma cachupa guisada especialmente para mim (favor especial das cozinheiras que a trouxeram de casa).
Depois de reconfortadas, despedimo-nos de destes novos amigos que fizemos (empregados, dono, hóspedes e guias), e entrámos na pick-up do Pierre que nos levaria a S. Filipe, lá bem em baixo.
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Durante o caminho a conversa passou pela origem das pessoas de Chã das Caldeiras (descendentes do Montrond), pela origem do crioulo e pelas diferenças linguísticas de ilha para ilha, e teve que acabar com as histórias fantásticas das famílias gigantes à melhor moda Cabo-verdiana (uma montanha de filhos de mães e pais diferentes). Para além do Pierre tínhamos o Carlos como companhia na viagem (guia da subida ao vulcão), que acabou por nos contar as melhores histórias que conhecia, enquanto deixávamos para trás o gigante que cospe fogo.
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Após uma hora de viagem chegámos a S. Filipe, decidimos ir almoçar ao Le Bistro, mas desta vez para provar as pizas caseiras com produtos da terra (atum e queijo). Enquanto saciávamos a fome começou a chover, e não foi pouco, molhando as ruas e as escadas de saída do restaurante, escusado será dizer para quem me conhece, que eu devo ser a pessoa que mais tropeça e se desequilibra enquanto anda, e como tal não é de estranhar que tenha baptizado o chão de S. Filipe com um a fenomenal queda… Só caí de costa pelas escadas a baixo, quase rebentei com o pulso esquerdo que ainda passados 3 meses me continua a doer, e sinceramente não sei como não parti a coluna ou o pescoço ou mesmo a cabeça, tal foi a brutalidade com que embati contra as escadas molhadas… mal me levantei percebi que ainda estava viva, por isso seguimos viagem já com alguma dificuldade. Uma despedida em grande…
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Dirigimo-nos para o aeroporto com as bagagens às costas, num dos muitos táxis que circulam por estas bandas. Depois do check-in e já com os cartões de embarque na mão, aguardámos tranquilamente na sala de embarque. A pista estava vazia e o avião tão esperado tardava em chegar. A chuva que não parava de cair decidiu então mostrar quem é que manda e começou então a chover torrencialmente, como nunca esperei ver neste país. Em sussurro vão chegando aos nossos ouvidos as histórias dos locais que dizem que com chuvas assim os aviões não aterram e como a pista não é iluminada só com muita sorte ainda saíamos dali hoje.
Chega então o anúncio oficial: o voo está atrasado 2 horas. Aguardámos pacientemente, afinal os atrasos são muito habituais na TACV e o tempo lá fora não estava para brincadeiras. Quando chegou o segundo aviso, ainda chovia, por isso não poderiam ser boas notícias… mas em vez de atraso confirmado, desta vez era mesmo o cancelamento do voo.
Digo-vos meus amigos, a partir daquele momento comecei a sentir mesmo a insularidade… senti na pele o que é viver numa ilha. Estava presa no Fogo, uma ilha lindíssima é verdade, mas na qual já não tínhamos nada que fazer.
Depois de discutir com o chefe de escala do aeroporto lá conseguimos fazer uns telefonemas para a Praia a avisar do sucedido e a cancelar o alojamento que o Emanuel tão prestável tinha ficado de tratar para nós. Com tanto protesto conseguimos também que nos colocassem numa pensão para passar a noite sem pagar – Pensão Blue Sky, cujo proprietário é o próprio chefe de escala… está tudo em família.
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De regresso a S. Filipe, mais uma vez, lá vagueámos pelas ruas já nossas conhecidas, ora para cima ora para baixo, a pensar o que poderíamos ainda fazer. Depois de comprar um bloco de desenho, uns lápis de cera e umas barras de plasticina para nos entretermos, dirigimo-nos ao famoso SeaFood, o tal com vista para o cemitério, para passar o resto da tarde. Já sem chuva, e com o sol ainda a brilhar (afinal sempre poderíamos levantar voo) sentámo-nos numa mesa e começámos a fazer aquilo que não fazíamos à anos… descansar.
Bebíamos um sumo de goiaba daqueles deliciosos que vêm do Brasil (marca: Vale ou Mais), desenhávamos nas folhas do caderno da escola e fazíamos figuras em plasticina. Já não me lembrava da última vez em que estive parada a fazer coisas que não interessam para nada nem para ninguém… foi estranho, mas soube muito bem.
A plasticina transformou-se no arquipélago de Cabo Verde a uma escala reduzidíssima, e ainda em dois crioulos um do sotavento e outra do barlavento que viajavam no avião miniatura que nos havia faltado nessa tarde.
Entretanto chegou o Carlos (o tal guia do vulcão que tinha descido connosco), trazia na mala um tabuleiro de xadrez, e desafiou-me para jogar. Já não jogava desde… já nem me lembro, acho que a última vez ainda foi em Moçambique, terá sido em 1992? Já lá vão 13 anos… e isso revelou-se no jogo… que não me correu nada bem. Mas não me importei… soube-me bem jogar, soube-me bem aqueles momentos, estar ali sem stress, e sem pressão para conquistar algo… estava só a passar o tempo num sítio calmo…
Sem me levantar da cadeira pedimos uma garoupa grelhada para jantar… deve ser o meu peixe preferido, do qual comi praticamente todas as semanas sem me enjoar. Depois de uma tarde que parecia infindável, a lua apareceu para mostrar que já eram horas de descansar… afinal agora parecia cedo demais para esta parte da viagem acabar…
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Mas ainda havia uma surpresa por revelar. O Carlos, discretamente, aproveitando um momento em que a minha mãe e a minha irmã não estavam por perto, decidiu revelar o motivo da sua vinda para S. Filipe nesse dia… Tinha-se apaixonado por mim, e queria pedir-me para pensar em ir morar com ele… Eu nem estava a acreditar no que ouvia, mas a sinceridade da sua voz e o brilho dos seus olhos, fizeram-me acreditar em cada palavra desta declaração de amor… Foi um momento lindíssimo, e ficará para sempre no meu coração.
Se há uma coisa em que o povo cabo-verdiano me surpreendeu foi na pureza dos seus actos e sentimentos… na generalidade não fazem jogos, e são honestos, e por isso tocam fundo no coração.
Claro que a proposta do Carlos era linda, mas era uma proposta que eu nunca iria aceitar, mas a forma como se revelou nesta conversa fez com que ficasse marcado na história da minha vida em Cabo Verde, e será sempre um amigo que vou prezar.
E já que falo de ti Carlos, espero sinceramente que já estejas melhor e que consigas voltar ao trabalho que adoras e a viajar como estavas a planear.

quinta-feira, setembro 22, 2005

Viagens - Parte 3 - Fogo

Oito da manhã… espreguiçar… hum… que noite bem dormida, que bom que é acordar sem o despertador, numa cama de casal fofinha só para mim, num quarto grande arejado pelas duas ventoinhas de tecto e com aquela vista sobre o mar…
O pequeno-almoço está servido… Pão fresco, queijo di terra (diferente do que se encontra no Mindelo ou em Sto Antão), bananas, doce de goiaba, café com leite… acho que só faltava mesmo a cachupa guisada… mas isso é para os locais, aqui os cabo-verdianos não estão habituados a que umas estrangeiras gostem de comida a sério logo pela manhã.
Tranquilamente saímos do quarto e procurámos a pick-up que nos levaria ao ponto mais alto da ilha… é dia de subir até Chã das Caldeiras, de pela primeira vez pisar o vulcão. Pierre, o dono do Pedra Brabo (único alojamento que existe lá em cima), e também a nossa boleia, combina a saída de S. Filipe para as 11h da manhã. Ainda falta um bocado, temos mesmo que esperar… o que fazer até lá? Vamos visitar a Casa da Memória.
Casa da Memória é um antigo solar recuperado, por dentro, por fora e que é um autêntico museu de peças antigas que antes preenchiam as casas senhoriais de S. Filipe. Peças lindíssimas, algumas peças únicas de um tempo de senhores proprietários, desde simples chapéus até aos mais requintados serviços de copos de cristal… selas de cavalo e até mesmo escarradeiras… Mas não são só as peças que contam a história desta ilha e deste lugar, no pátio interior as árvores, trepadeiras e plantas que aqui crescem são todas plantas endémicas. A biblioteca do outro lado, está ainda pouco recheada, mas é a boa vontade de uns e os donativos de outros (incluindo do Presidente de República Jorge Sampaio), que vão enchendo este espaço com cultura. Este local vale a pena visitar, porque aqui até as traves do tecto e até as portas antigas de madeira foram conservadas, aqui as peças ainda têm dono, foram apenas emprestadas para não se perder este pedaço de história… aqui até o livro de receitas de uma qualquer família abastada abre as suas páginas para nos recordar do que se comia noutros tempos. Vale a pena visitar este lugar com tempo, bastante tempo… é que todo o tempo que se dispensa para ver apenas algumas salas é muito pouco… porque a cada canto, em cada parede, em cada prateleira, estão peças que merecem a nossa atenção. É também preciso tempo para uma conversa muito interessante com a guardiã deste espólio… uma sueca que também ela decidiu mudar-se para cá há já largos anos. Por viver aqui há tanto tempo, as famílias a pouco e pouco foram-lhe oferecendo a oportunidade de guardar e preservar as peças herdadas, passaram-lhe todos os objectos e as suas histórias para que se pudesse montar esta casa museu, que é talvez o ponto de maior interesse cultural de toda a ilha.
Depois de mais um rolo de fotografias e de muita curiosidade saciada, tivemos que sair já quase a correr para não perder a nossa boleia para a aventura seguinte – Chã das Caldeiras. Pegámos rapidamente nas mochilas, entrámos na carrinha e saímos de S. Filipe a alta velocidade… o que não é muito bom considerando que apesar da estrada estar em muito bom estado, ela é feita de calçada… imaginem o efeito que tem nas nossas costas…
Subimos, subimos, subimos, parámos para dar boleia a uma mãe e as suas duas filhas, e continuámos a subir, a subir, a subir… até que finalmente se vê um dos picos do vulcão (o pico maior). A paisagem vai mudando… a terra deixa de ser castanha e arenosa e passa a ser preta piroclástica… Bem que eu gostava de conseguir descrever a paisagem que surgiu aos poucos em frente dos meus olhos… mas não consigo.
Passámos a placa que nos saúda à entrada do Parque Natural de Chã das Caldeiras, e continuamos a andar. Aqui a paisagem é impressionante… são rios de lava seca, pedras pedregulhos enormes pretos e castanhos escuros, com pontas bem afiadas… aproximamo-nos da Bordeira, que é nem mais nem menos do que a borda da caldeira do primeiro vulcão que abateu, ficou só mesmo a borda de um dos lados (em forma de semicírculo), formando uma única montanha com cerca de 1000m de altitude a partir de Chã das Caldeiras (que já está a 1700m de altitude). Do lado onde não existe bordeira é a “saída de emergência” da lava que saiu do vulcão, e que se transformou em rio ao descer a encosta até ao mar.
Na plataforma que se formou no centro da caldeira abatida, e que fica rodeada com a bordeira, está Chã das Caldeiras, uma localidade pequena cujos habitantes são mulatos de pele clara, com cabelos loiros ou castanhos claros, quase lisos e com olhos verdes ou azuis… pessoas lindíssimas, quase todos descendentes de um tal Montrond, francês que no século XIX se instalou aqui depois de fugir da sua terra natal. Aqui não existem nem nascente de água nem chega cá a electricidade, e vive-se apenas da parca agricultura que se desenvolve nos poucos terrenos férteis que ficaram da última erupção. Aqui produz-se o único, fortíssimo e excelente vinho de Cabo Verde, o vinho Chã das Caldeiras, nas suas versões tinto, branco e rosé. As vinhas são algo incrível… pois são plantadas em buracos na pedra do vulcão onde se coloca um pouco de estrume… não são necessárias estruturas de suporte, pois outro dos segredos deste vinho é que as vinhas andam mesmo pelo chão.
Mais ou menos no centro de Chã das Caldeiras ergue-se imponente o maior pico do vulcão… 2829m… é demasiado forte e grande para descrever… para os mais aventureiros aconselho que façam a caminhada até ao topo, são só cerca de 4 ou 5 horas para quem estiver bem preparado, mas para quem seja mais preguiçoso, existe ainda outra possibilidade… subir apenas ao pico mais pequeno e mais recente. Localizado numa das encostas do pico principal, encontra-se o pico pequeno que resultou da erupção de 1995, e que demora apenas 1 ou 2 horas a subir. Mas atenção… ao chegar lá acima, no topo do pico pequeno, não se deve pisar com demasiada força o solo, e muito menos se pode saltar… é que para além do solo ainda estar quente, a camada que já secou tem cerca de 10 cm apenas, e corre-se o risco de “meter o pé na poça”, mas neste caso, na poça de lava que continua a correr por baixo. Assustador! não é?
Depois de um almoço digno do melhor restaurante francês em plena Paris… o dono era também um óptimo cozinheiro, e preparou-nos um magnífico bife de atum com um molho de cogumelos que era qualquer coisa de divinal…. Hummm…
Como neste dia não tínhamos já muitas horas de sol decidimos não subir nenhum dos picos… fomos antes ver as vinhas, a produção de vinho, e claro, fomos provar este néctar dos deuses. Pelo caminho entre as casas na aldeia, os miúdos vinham a correr para nós a falar francês com muito maior facilidade do que falavam português, e pediam-nos ou quase exigiam de forma arrogante dinheiro… uma atitude algo estranha a que eu não estava habituada… mas depois de umas quantas fotos, depois da festa do costume em volta da máquina para se tentarem identificar uns aos outros, e depois de uma mão cheia de rebuçados, as suas carinhas voltaram a ter o brilho e a ingenuidade de uma criança qualquer.
Depois da etapa mais social do circuito, eu e a minha irmã decidimos ainda tentar na última hora de sol… (o sol aqui põe-se mais depressa por causa da bordeira)… fazer uma caminhada até nos aproximar-mos ao máximo do vulcão… andámos, andámos, andámos… e parecia que nem sequer saíamos do mesmo lugar…finalmente aproximámo-nos do limite da lava mais recente… e ficámos largos minutos a contemplar cada pedaço de rocha dura, moldada por esta força brutal da natureza em pleno processo produtivo… esta paisagem é de um fascínio… tem um poder… sentimo-nos pequeninos… muito frágeis perante tanta… tanta força bruta que pode ainda brotar da terra…
Pelo caminho íamos sendo atacadas por moscas… a certa altura já parecíamos mais búfalos em plena savana africana… eram quase mais moscas do que superfície corporal para elas ocuparem… depois de muitos movimentos a tentar enxotá-las percebemos que mas valia esquecer a comichão e relaxar… elas não iam mesmo embora… nem mesmo quando nos cruzávamos com algum miúdo… não ficava para trás nem uma mosca… e isto porquê??? Chegámos a conclusão que o creme protector solar nívea é um excelente atractivo de moscas… não o usem em locais com muitos insectos…
À medida que as nuvens iam encobrindo a bordeira e o sol de ia escondendo, o ar arrefecia a uma velocidade alucinante, demos meia volta e regressámos a “casa”. O que mais queira depois deste dia era um banho quente… mas as quase-estalactites que saíam da torneira desencorajavam o mais corajoso dos banhistas… vestimos então praticamente toda a roupa que havíamos trazido, calcámos os ténis, e mesmo assim pela primeira vez em Cabo Verde tive frio, não muito, mas já era frio.
Sentámo-nos à luz das velas a comer outra delícia da cozinha internacional, um bife magnificamente temperado acompanhado com os legumes locais, e à sobremesa… a melhor mousse de chocolate que já comi na minha vida…. Que requinte… num dos lugares mais inóspitos, mas pobres e mais espectaculares do mundo… comemos ao melhor estilo de um restaurante 5 estrelas… em Cabo Verde.
Para acabar a noite e antes que o gerador fosse desligado, aprendemos com os guias locais a jogar às cartas com um baralho de Tarot. Devo dizer que de previsões não tem nada, e de facilidade também não…. Nunca vi um jogo de cartas com tantas regras e com tantos pontos para contar… era quase meia-noite estavam 3 portuguesas, 2 franceses, 2 alemães e 2 cabo-verdianos a jogar… num ambiente quase familiar.

quarta-feira, setembro 21, 2005

Viagens - Parte 2 - Fogo

No dia seguinte (21 de Setembro) levantámo-nos ainda antes do sol nascer e sem pequeno-almoço tomado já estávamos a entrar no autocarro da TACV (o que faz o transporte dos trabalhadores) para dar a volta à cidade e para nos levarem novamente ao aeroporto. O voo seguinte tinha como destino o Fogo, finalmente. A viagem de cerca de 30 minutos levou-nos à ilha que agora posiciono em 2º lugar na lista das minhas preferências. Vir a Cabo Verde e não conhecer a ilha do Fogo é quase um pecado.
Ao chegar a paisagem é indescritível, verde muito verde de uns lados, castanha e seca de outro e no topo e ao longo de uma das encostas o negro da lava da última erupção.
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Parámos no aeroporto de S. Filipe já eram quase 8h da manhã, e deparámo-nos de imediato com algumas situações curiosas que só acontecem em sítios pequenos: a pista só pode ser utilizada durante o dia pois não tem iluminação, para além disso o tamanho está calculado ao milímetro para receber este tipo de aviões, eles tocam no chão no início da pista e só abrandam o suficiente para dar a curva mesmo na outra ponta antes de chegar à terra batida, e depois de sairmos do avião encaminham-nos para um corredor com 2 buracos quadrados quase junto ao chão, por onde são passadas as bagagens à mão para os respectivos donos… quais tapetes rolantes, quais carrinhos para a bagagem… aqui não é preciso nada disso. Enquanto observávamos atentamente para não deixar fugir as nossas malas meti conversa com o tipo da Ecotur, empresa dedicada ao turismo de natureza e aventura na ilha do Fogo. Então não é que nós com a descontra total que é este país, não tínhamos marcado nada, absolutamente nada, nem alojamento nem excursões… Decidimos pura e simplesmente ir ao sabor da maré, sem preocupações. E quando se vai assim as coisas até resultam… Lá falámos com o Albino, que não só nos deu boleia até à cidade (a 2 minutos de distância) como também nos arranjou alojamento, pequeno-almoço, e claro está, excursões.
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Deixámos as bagagens numa nova pensão que fomos estrear, localizada junto ao mercado, bem no centro da cidade, por cima da loja do chinês mais famosa do local - Loja Comericial Jackie chen (é mesmo assim, mal escrita - comericial) …. Uau… A vista do nosso quarto duplo era divinal, sobre o oceano e lá ao fundo uma mancha bem próxima, a ilha da Brava. A casa de banho era óptima e só lhe faltavam aí uns 5 azulejos, mas em compensação tinha água quente (não que agora fosse necessário, mas pronto).
Depois de trocar de roupa e de rolo fotográfico lá começámos a explorar as redondezas. A cidade é sempre a descer, sempre… ou então sempre a subir… depende da perspectiva… Para irmos da pensão para o Sea Food (onde tomámos o pequeno-almoço) é a descer, para irmos para a Ecotur ou para o restaurante Le Bistro, é sempre a subir…
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Então desta primeira vez descemos, travávamos a fundo para perder balanço e parávamos a olhar maravilhadas os solares antigos lindíssimos que se vão degradando com o tempo. Esta deve ser a cidade mais bonita de Cabo Verde… Mindelo é lindíssimo, mas aqui a arquitectura colonial é imensa e a distribuição das casas e dos monumentos é incrível… Para perceberem melhor o que quero dizer podem esperar pelas minhas fotografias, ou melhor ainda… apanham um avião e vêm para cá.
Chegámos então ao Sea Food, que tem uma cachupa guisada maravilhosa, bem diferente da que tenho comido nas ilhas do Barlavento, e tem uma vista no mínimo irreal. A varanda do restaurante dá para o leito de uma pequena ribeira que desagua no mar em tempo de chuva, a areia da praia é negra e brilhante, e as ondas que aqui batem desfazem-se em espuma branca. Do outro lado da ribeira é possível ver um antigo cemitério, o cemitério dos aristocratas, com uma vista magnífica, era um verdadeiro privilégio poder ser enterrado aqui. Para perceber a importância deste cemitério e a imponência de algumas das casas é indispensável conhecer um pouco da história desta ilha, mas como não tenho nem espaço nem tempo, e como não sou historiadora, sugiro que se dediquem à pesquisa na Internet.
Mas sobre o cemitério e a sua importância em tempos idos conta-se a seguinte história: uma senhora aristocrata chorava desalmadamente no funeral de um dos seus amigos, grande amigo por sinal da alta sociedade local, e ao ser questionada sobre a razão de tanto sofrimento pela morte do dito amigo, eis que a resposta é bem diferente do que o que se poderia esperar: Choro porque já não há lugar para mim neste cemitério, ele vai ser o último a descansar neste lugar. Pois, não sei se é verdade ou não, mas a verdade é que o cemitério é tão pequeno que já não é utilizado para os funerais.
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Mas continuando… depois do pequeno-almoço parecia que estávamos a entrar num novo dia, desta vez subimos a cidade porque já não dava para descer, e entre mais umas quantas fotografias surge um personagem local. O Sr. Pires que ao reparar em mim com a máquina em punho me pediu uma fotografia em troca da história da sua vida. Ele é filho bastardo de um tal de Pires, que por sinal até tinha alguma riqueza no Fogo, e por intermédio deste pai tipicamente cabo-verdiano (com muitos filhos de várias mulheres), é tio do actual Presidente da República Pedro Pires… e não tive tempo para mais… o Albino chegou na pick-up para nos apanhar e iniciar a nossa volta à ilha.
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A ilha do Fogo é redonda, mesmo redonda, e fazendo a volta pela estrada cá de baixo a paisagem varia tanto que nem dá para acreditar. Saímos do lado seco e aos poucos e poucos vamos enchendo os olhos com verde, cada vez mais verde, com vales lindíssimos, com vegetação quase luxuriante, vales bem diferentes dos de Sto Antão, mas quase tão imponentes, com uma grande diferença, aqui temos sempre o mar do nosso lado direito, a ilha é assim tão pequena… e em Sto Antão há muitos sítios onde nem se sente a presença do mar.
Passámos por terrinhas bonitinhas, demos boleia a quem nos pedia ao longo da estrada, vimos gente e mais gente junto dos depósitos de água à espera de vez para encher os bidões e poderem levar água à cabeça para cozinhar, vimos cabras e mais cabras galinhas e burros por todo o lado a “pastar”, vimos lixo montes de vidro deixados nos vales a brilhar ao sol, vimos as “lojas ambulantes” que aqui proliferam e que não são mais do que mulheres a carregar um alguidar gigante com roupa e chinelos para vender em qualquer lugar.
Vimos as casinhas à beira da estrada com flores e plantas bem tratadas à porta e miúdos no terreiro e nas praças a brincar. Aqui as pessoas parecem-me mais clara e muitas delas têm até os cabelos loiros, algo quase difícil de imaginar.
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Parámos em Mosteiros para almoçar, na mesa ao lado sentou-se uma menina que todos dizem surda e muda e com atraso mental, mas que esteve o tempo todo a observar os nossos lábios e gestos a tentar ler o que dizíamos e a tentar comunicar. Crianças como esta existem em toda a parte do mundo, eu sei… mas algumas têm a sorte de nascer no país certo onde existe tratamento e acompanhamento, e na família certa com dinheiro e disponibilidade para dar… Ela aqui... temos que esperar que o pai e a mãe dela se preocupem mais do que se costumam preocupar, temos de esperar que a avó que cuida dela não morra e não a deixe para trás. Felizmente a solidariedade aqui é grande e não faltam anónimos para ajudar.
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Depois do almoço com o calor a apertar subimos um bom bocado por um trilho junto a outra ribeira para ir ver de perto as plantações do café mais apreciado do arquipélago, andámos pelo meio das casas, a dizer bom dia a toda a gente, e a tirar fotos que poucos turistas conseguem tirar. Ao longos dos caminhos de pé posto, no meio das localidade e junto à estrada por toda a ilha vimos um monte de “abrigos para os santos”, uma espécie de casinhas de pedra ou de cimento onde se colocam as imagens e onde se pára para rezar. Todas têm uma cruz em cima, seja desenhada ou talhada, mas nenhuma tem santo algum, suponho que nunca tenham tido… mas a fé deste povo sente-se no ar.
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Continuámos o nosso caminho, vimos numa praia qualquer de pedra rolada duas cabeças dentro de água, eram 2 body boarders locais… e andámos mais um pouco, vimos mais um cemitério, mas desta vez diferente do habitual, as campas estavam pintadas de verde, ou de azul, ou de amarelo, dá outra cor e outra “vida” ao lugar. E continuando sempre a andar… começámos a ver rios de lava preta seca, rios interrompidos por campos verdes que tinham conseguido escapar, olhamos para cima bem lá para o topo e vemos o pico do vulcão…é mais brutal do que se podia esperar. Mas o vulcão fica para amanhã e seguimos viagem mais uma vez. Agora parámos nas Salinas, uma praia de pescadores onde só descansam os barcos e as redes de pesca. Tudo à volta é preto, a água salgada bate nas rochas e fica a secar ao sol em plataformas de lava de onde depois se pode extrair o sal, naquela paisagem quase inóspita os únicos pontos de cor, quase produtores de arco-íris são os barcos que a esta hora descansam na areia antes de mais uma noite de dura faina que está quase a chegar.
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Seguimos a nossa viagem já quase sem forças, o cansaço começa a ganhar lugar, começa a paisagem novamente a mudar, a ficar mais seca, a ficar mais quente e o sono a chegar. Tentamos com esforço manter os olhos abertos para apreender o máximo que esta ilha tem para nos dar, e quando pensamos que já não aguentamos, eis que surge novamente S. Filipe, regressámos ao mesmo lugar.
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Subimos com dificuldade as escadas para o quarto, tomo um banho de água fresca para arrefecer depois de horas a suar. Deito-me sobre a cama enquanto aguardo que elas se arranjem e sem sequer me ajeitar caí num sono profundo, como já não me lembrava, e até comecei a sonhar.
Acordo algumas horas mais tarde porque elas já sentem a fome a apertar, levanto-me com algum esforço, acabo de me vestir, e sem grandes dúvidas dirigimo-nos para o restaurante Le Bistro. Este restaurante é de uma alemã (se não me engano) que decidiu vir para aqui viver em tranquilidade. Enquanto esperamos o macarrão com tomate e malagueta iniciamos a conversa com os companheiros de jantar, 1 alemão e duas peruanas, uma delas casada com o tal alemão. O casal trabalha para a Cooperação Alemã e está cá a trabalhar no Parque Natural de Chã das Caldeiras (no pico do vulcão). Durante estas viagens conhecem-se pessoas muito interessantes, com motivações e valores diferentes daqueles que se encontram nas pessoas que vivem fechadas num só sítio toda a sua vida… diferentes de muitas das pessoas em Portugal.
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Enquanto comíamos reparámos que não se ouve um único ruído, que não existe música no ar, que diferente que é esta cidade da cidade do Mindelo, que tem festas todos os dias sem parar. Regressámos a “casa”, deito-me na cama, fecho os olhos e deixo-me embalar pelo silêncio que paira no ar.

terça-feira, setembro 20, 2005

Visitas e Viagens - parte 1 - S. Vicente, Santiago e Fogo

O mês de Setembro teve muito mais do que a ida a Sto Antão nos primeiros dias… teve tanto mais que não consigo escrever sobre tudo o que se passou. Foram dias e dias a aproveitar pequenos e grandes momentos. O mês de Setembro foi o mês de encerrar as visitas, foi o mês das despedidas, foi o mês do teatro, foi o mês do balanço, e o mês de começar a preparar a minha cabeça de lua para o regresso a Portugal.
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Dia 9 foi o dia de mais uma partida e o dia de mais uma chegada. O irmão da Catarina esteve cá durante uma semana de férias e no seu voo de regresso ao Sal viria a minha mãe. Como já vem sendo habitual o voo atrasou tanto que em vez de chegar às 16h de dia 9 chegou às 1:30 de dia 10. O desconforto das cadeiras do aeroporto era já quase insuportável e a comida no bar já escasseava, quando finalmente se ouviram as hélices do ATR que se fazia à pista. Depois das despedidas à porta da sala de embarque, demos meia volta e passámos para o lado de fora do edifício para receber as pessoas que chegavam já sem forças à sala das bagagens.
Finalmente chegou a minha mãe, lá nos metemos no táxi do Sr. Augusto (o nosso taxista preferido) e fizemos mais uma entrada em grande na cidade do Mindelo. Depois de por a conversa em dia, lá nos deitámos para recuperar de horas de sono em atraso.
Toda esta semana correu bem… muito descanso, muita comidinha da mamã, muito mimo… a minha mãe já domina a cidade, já conhece as pessoas e os lugares, e em poucas horas já entrava no ritmo cabo-verdiano que tanto precisava para descansar do stress de Lisboa.
Como o Mindelact (Festival de Teatro do Mindelo) estava a decorrer, praticamente todas as noites lá íamos nós ao Centro Cultural do Mindelo para assistir a mais uma peça. Havia peças para todos os gostos e para várias línguas, optámos por ver peças de grupos de Cabo Verde, Moçambique, Guiné, Brasil e Espanha.
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Andávamos nesta vidinha quando no dia 16 logo de manhã bem cedo fomos outra vez ao aeroporto, desta vez para ir buscar a minha irmã que pela primeira vez pisava S. Vicente.
Desta vez o voo só atrasou uma meia horita (que nem sequer se considera como atraso…), depois de uma noite a tentar dormir qualquer coisa nos bancos do aeroporto do Sal, a Rita estava tão cansada que caiu para o lado logo depois do pequeno-almoço de cachupa guisada. Da parte da tarde e depois de descansar um pouco, enquanto eu trabalhava (alguém tem de ganhar o sustento…), lá andaram elas a passear, e acabámos o dia na Laginha a tomar banho até ao por-do-sol… hum… que delícia.
No fim-de-semana, e como o tempo era curto, elas meteram-se a caminho de Sto Antão para que a Rita conhecesse uma das ilhas mais bonitas deste país. Mas como eu tinha ido há pouco tempo, e também me estou quase a ir embora, resolvi aceitar um convite para um fim-de-semana à base de peixe grelhado e cachupa guisada na Aldeia do Norte de Baía. Não podia ter decidido melhor para descansar… não havia barulho, só se ouviam as ondas do mar na praia lá em baixo, passei os dias a jogar cartas e a apreciar a paisagem magnífica… mas o melhor de tudo foi tomar banho na praia à noite, sob o luar, sem mais ninguém ali perto sem civilização a incomodar…
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Na semana seguinte foi o corrupio total. Terça-feira ao início da tarde estávamos outra vez a caminho do aeroporto (já se está a tornar um hábito…), mas desta vez era para eu também partir. O voo tinha como destino a cidade da Praia, capital do país, localizada na ilha de Santiago. O objectivo desta viagem era chegar à ilha do Fogo, mas como a TACV adora mudar os voos à última da hora, tivemos que ficar a dormir numa cidade grande e desconhecida. Ficámos instaladas num dos piores sítios onde já dormi toda a minha vida (pior mesmo, só quando fomos ao Porto e ficámos numa pensão na rua de Sta Catarina, onde provavelmente só recebia meninas da noite… acompanhadas…). Mas o pior não eram os quartos, ou o cheiro que estava entranhado nas paredes, ou as possíveis baratas que deviam andar toda a noite por ali à vontade… o pior foi mesmo quando decidimos ir jantar. É preciso referir que como o voo foi alterado, tanto o alojamento como a refeição foram da responsabilidade da TACV, portanto não escolhemos propriamente o local de dormida, e não podíamos comer lagosta ao jantar. Para que fique registado o dito local que não aconselho chama-se Hotel Eurolines e o restaurante é conhecido pelo mesmo nome. Mas continuando… fomos comer ao restaurante ao lado do hotel, e tudo corria bem até que nos apercebemos que provavelmente o senhor que nos servia devia ser, quase de certeza, um “serial killer” da unhaca. Porque digo eu isto? No princípio não dava para notar, mas o tom de ameaça foi crescendo ao longo da refeição, tudo começou com a minha inteligentíssima pergunta: “A feijoada de choco demora muito tempo a fazer?” e a ainda mais inteligente resposta do dito senhor: “Depois de pedir, demora pouco tempo.” o que me soou a: “pede de uma vez que já estou farto de te aturar… estás aqui estás a apanhar”. Mas as coisas pioraram de cada vez que se trocavam palavras com o senhor. E chegámos ao ponto máximo do nervosismo e quase ao ponto de fuga, quando a minha irmã com o seu bom olho, reparou na unhaca. Sim…. UNHACA. Aquele apêndice que cresce em alguns seres do género masculino da raça humana, preferencialmente no dedo mindinho da mão direita. Bem, mas esta não era uma unhaca qualquer… esta unhaca parecia mais uma navalha. Tinha cerca de 2,5cm (sim… centímetros) de comprimento, e aparentava uma estrutura sólida e bem afiada. Aquilo era uma verdadeira arma de defesa pessoal e de ataque ao pessoal que chateasse o dono.
A nossa salvação veio com a brilhante ideia de telefonar ao Emanuel… Foste o nosso anjo da guarda nas curtas horas que passámos por esta cidade, Obrigada.
O Emanuel é um amigo, ex-colega do gabinete ao lado na Electra, que para além de me alimentar devidamente às horas do lanche enquanto estava no Mindelo, ainda se ofereceu para nos guiar pelas ruas desta cidade perigosa. Quando chegou ao restaurante para tomar um cafésito connosco é que percebemos que naquele local podíamos correr o risco de não gostar nada desta cidade… pois estávamos no equivalente à zona J de Chelas.
Mas pronto isso já passou. Depois do café saímos para dar a volta à cidade de noite, para conhecer as zonas boas e as zonas más, para conhecer os hotéis de luxo e pensar seriamente se não gostaríamos de pagar uma pipa de massa e dormir num sítio confortável… Mas acabámos por pensar melhor, já só íamos dormir umas 5 horas ou menos, e então regressámos ao hotel, e rezando para que não entrassem no quarto nem bichos nem outros seres estranhos, aconchegámos a cabeça na almofada e dormimos profundamente.

quarta-feira, setembro 07, 2005

Sto Antão - a despedida

O meu regresso ao Mindelo devia ter sido logo na segunda-feira de manhã, mas a necessidade de descansar mais um pouco era muito mais importante do que qualquer compromisso de trabalho. Por isso, sem me preocupar muito, decidi ficar mais dois dias. Na terça e quarta-feira os dias foram passados sem pressa, sem planos, sem stress… foram passados debaixo das árvores a comer figos, a jogar às cartas, à conversa com todos os que passavam, a andar a cavalo numa das éguas mais bem ensinadas que conheço (Altiva) e a contemplar a dimensão, a imponência e a beleza deste vale. Estes dois últimos dias passaram por mim rápido demais, como se fossem um sonho…sentia-me bem, descansada, despreocupada, integrada e feliz. Comecei a pensar como poderia ser a minha vida de decidisse viver aqui… tornou-se claro para mim que as mudanças que já se deram este ano foram brutais… estas mudanças fizeram-me passar de uma pessoa totalmente citadina que adorava a confusão, a rotina estúpida de trabalho, o stress, o pouco tempo com os amigos, as relações superficiais, as enxaquecas recorrentes e os inúmeros probleminhas de saúde, para uma pessoa muito mais calma, que só quer paz, que não tem pressa de chegar a nenhum lado, que adora o campo e o mar, que procura a tranquilidade, que preza as verdadeiras amizades e que adora a simplicidade das pessoas puras. A cada dia que passa a cada novo lugar que descubro percebo que as coisas complexas e fúteis que haviam na minha vida não me preenchem neste momento e que o me mais me interessa são as coisas mais simples…
Estou a tentar explicar-vos aquilo que é para mim ainda inexplicável… para perceberem o que quero dizer tinham que passar por um processo semelhante ao meu… mas conhecendo bem a vossa vida aí e a personalidade de cada um, sei que muitos de vocês dificilmente encontrarão o que eu encontrei aqui… por não se darem essa oportunidade ou por não a acharem importante…
O contacto com a natureza e com pessoas tão extraordinárias como as que conheci aqui e em alguns outros locais ao longo da minha vida, têm sido essenciais para repor o equilíbrio tirado pelas rotinas de Lisboa. Por isso quando regressar terei de repensar a minha vida, não quero trabalhar mais de 8 horas por dia, quero ter tempo para estar com os meus amigos, quero ter tempo para ir passear, para ir andar a cavalo e para fazer body board… No fundo, quero verdadeiramente viver… Já que não o posso continuar a fazer aqui, ao menos que o que eu tenha aprendido sirva para melhorar a minha vida em qualquer outro lado do mundo onde possa residir.
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Depois de tantas reflexões e de tantos momentos de descanso era hora de partir. Não sei se ainda conseguirei voltar à minha ilha de eleição antes de partir, não sei se terei oportunidade de regressar aqui, se depender de mim, voltarei, de férias ou em trabalho, seja de que maneira for, voltarei. Com algum custo arrumei a minha mochila, comi a última cachupa guisada, aceitei o saco cheio de papaias que me ofereceram, despedi-me quase em lágrimas dos meus anfitriões, meti-me na “Hiace” e por apenas 400$00 iniciei a viagem de regresso ao lado seco da ilha, depois ao barco, depois ao Mindelo e à confusão. Nunca tinha achado que a cidade do Mindelo fosse agitada ou confusa, mas depois de praticamente 6 dias no paraíso da tranquilidade, esta cidade pequenina mais parecia uma capital europeia ou americana, com montes de gente, montes de carros, barulho e confusão. Se o regresso teve este impacto em mim, nem consigo imaginar o que será voltar a sobrevoar a 2ª Circular antes de aterrar na cidade mais agitada e confusa de Portugal.

segunda-feira, setembro 05, 2005

Sto Antão - parte 4

O segundo dia da estadia no Eito começou com a observação das lides diárias da casa: pilar o milho, cozinhar a cachupa, fazer doces caseiros, hum… delícia… com os ares da “serra” repleto de cheiros a comida caseira, o apetite abriu e mais uma vez lá tive que comer um pequeno-almoço gigante… oh que chatice…
Como em férias não há pressa, nem compromissos, nem nada para fazer, ficámos sentados à sombra a ver as pessoas passar na estrada. Todos os que passavam cumprimentavam com um “bom dia” sonoro, mas a conversa não ficava por aí… Alguns, muitos, paravam e trocavam connosco dois dedos de conversa, e às vezes lá surgia um personagem que nos contava uma mão cheia de histórias. Em apenas algumas horas fiquei a saber a vida de uns quantos que por ali viviam, sem perguntar nada punham-me a par da sua família, do seu dia-a-dia, da sua vida. Raras foram as vezes que eu não percebia o que me diziam, acho que ao fim de uns dias o meu ouvido já se tinha habituado a ouvir crioulo, e por isso percebia a maior parte do que me diziam. No entanto não me safei de nestes dias ser abordada com perguntas com segundos significados que eu não percebia, é que a linguagem popular é bem mais difícil de perceber do que o crioulo “convencional”. Em poucos dias enriqueci o meu dicionário, mas ainda sinto uma enorme dificuldade e medo de começar a falar… é que para os portugueses é fácil perceber o crioulo, mas é difícil falar, digo isto porque a minha tendência mais natural é de continuar a dizer as palavras em português, esquecendo-me de as cortar a meio e de lhes dar aquela entoação estranha. Para qualquer um de vocês que viesse cá, penso que seria fácil começarem a perceber o que se diz em apenas 2 semanas (se calhar até menos), mas se tentassem falar tenho a certeza que o que diziam sairia muito mais parecido com o português do que com o crioulo.
Mas voltando ao relato do dia 5 de Setembro, como parar é morrer decidimos descer um bocadinho o vale e lá mais abaixo falar com as pessoas. Já não me ria tanto à muito tempo… entre ponche de mel acompanhado de bananas e umas cervejinhas fresquinhas, ríamos como uns perdidos perante os comentários hilariantes do artesão mais famoso da Ribeira… falou-me da sua vida, do que fazia e do que tinha para me oferecer caso me quisesse casar com ele… Não me senti invadida nem incomodada, pelo contrário, as conversas mostraram uma pureza de sentimentos como já não estava habituada a ver…
Mais para a tarde decidimos meter-nos a pé pelo caminho que a subir nos levaria ao fim-de-estrada. Mal começámos a andar comecei a sentir o quão em baixo de forma estou… só me apetecia parar, dormir à beira da estrada, tirar fotografias enquanto estava deitada, e esperar pacientemente por uma boleia que nos viesse salvar. Depois de andar um pequeno troço do percurso lá conseguimos que uma “Hiace” parasse para nos levar. Dentro da viatura iam principalmente locais que ao fim do dia regressavam a casa, ia também o novo morador da zona, se não me engano um Italiano que decidiu vir para aqui morar… ao longo do caminho foram saindo todos nos sítios mais incríveis… bem afastados das casas onde moravam… muitas vezes as pessoas tinham que andar longos minutos por caminhos de pé-posto com inclinações inacreditáveis, para chegar ao conforto do lar… as casas que se vêm um pouco espalhadas por todo o lado são pequenas, são feitas de pedra sobre pedra com telhados de palha ou de cana seca. Podem encontrar-se casas em pequenos aglomerados ou mesmo isoladas de tudo o resto, algumas estão construídas à beira de ravinas, outras no topo das montanhas onde se imagina um acesso impossível. Só para viver nestes locais que desafiam a força física é preciso ter muita coragem…
Chegados ao fim-de-estrada percebi que é mesmo onde a estrada acaba no cima da Ribeira do Paúl… daqui temos vista privilegiada sobre o vale, aqui as pessoas carregam com as provisões à cabeça, andando rapidamente por entre casas, por entre as plantações, em caminhos de pedra que atravessam o curso normal das ribeiras. Quem chega aqui pela primeira vez, e se deparada com um cenário como o que eu vi, fica todo arrepiado… as pessoas de uma simpatia… a força que têm no corpo e a leveza dos seus traços… as montanhas enormes e poderosas pintadas de verde, o vale rico em tudo, as nuvens aqui bem perto, tão perto que quase as podemos tocar, o silêncio do princípio do mundo, aquele tipo de silêncio que não se escuta em mais nenhuma lugar… O nevoeiro era tanto e cada vez mais cerrado que julguei estar num sonho, num local perdido e que só por sorte se pode achar… parámos para contemplar a paisagem enquanto bebia mais um ponche na casa do produtor, acompanhado mais uma vez por banana prata… senti um arrepio na pele, de repente começou a arrefecer, era o sol que se punha lentamente por detrás da montanha, e era a chuva que decidia começar a cair. Num sítio onde não imaginava estar, a fazer o que nunca me tinha passado pela cabeça, começo a assistir a uma tempestade tropical que nos podia ter deixado presos nesta zona do vale durante a noite. Mas mal as gotas começaram a ficar mais leves era hora de partir… voltámos à estrada e logo no início do percurso conseguimos arranjar boleia para descer. À medida que a carrinha de caixa aberta ia avançando iam entrando e saindo pessoas, só nós fizemos o percurso todo até Vila das Pombas, a parte mais baixa da Ribeira. Em alguns minutos fizemos um percurso que a pé demoraria cerca de 4 horas, conseguimos com sorte fugir à escuridão da noite no meio da estrada, o carro que nos havia dado boleia tinha sido o último a sair do fim-de-estrada.
Já na Vila das Pombas parámos na tasca de palha que se encontra sobre a praia de mar, e esfomeados de tanto “andar” decidimos cometer uma loucura nada saudável… comer perna de frango frita acompanhada de uma dose brutal de batatas fritas regadas com ketchup e maionese… o top da fast food em Cabo Verde… nham nham…
Regressados a casa o recolher obrigatório foi ditado pela costumeira falta de luz… o céu estava fantástico, negro pintado de estrelas… tão nítido que até se podia ver com clareza a Via Láctea… já desde pequenina que não me lembrava de ver um céu assim… sem poluição, sem nuvens e sem pontos de luz que pudessem estragar a festa… e ainda por cima no meio do oceano… querem melhor do que isto?
Peguei no candeeiro a óleo e segui para o meu quarto, o gerador já tinha sido desligado por isso o silêncio era total… a Ribeira do Paul deitara-se toda à mesma hora, para acordar bem cedo com o nascer do sol.

domingo, setembro 04, 2005

Sto Antão - parte 3

Já começa a ser um muito mau hábito dormir poucas horas… há sete meses que por aqui ando e ainda não me posso gabar de ter dormido profundamente durante uma noite inteira… Mas as noites mal dormidas estavam prestes a acabar… na primeira noite, ou melhor, na primeira madrugada no Eito dormi pouco, mas bem, quem me manda a mim chegar a casa ao nascer do sol?? Mas os dias e as noites seguintes deram para compensar quase 4 meses de noites mal dormidas… (já só faltava recuperar mais 3 meses do total da estadia)
Mas voltando ao terceiro dia em Sto Antão… depois de dormir cerca de 3 horas (nem sei se chegou a tanto), lá me arrastei para fora da cama, e ainda em camisa de dormir saí do quarto para ir tomar o refrescante banho matinal. Mal saí do quarto cruzei-me com 3 caras desconhecidas… deviam ser da família que me acolhia, mas eu ainda não tinha sido apresentada. Ainda mal tinha conseguido emitir um “Bom dia” quando me puseram uma toalha nas mãos e me disseram para a seguir ao banho ir à cozinha tomar o pequeno-almoço. Como eu não gosto de contrariar, muito menos de manhã, e como a fome já era muita, lá segui as instruções. Mal abri a torneira da banheira senti-me recuar aos meus tempos de infância na Serra da Estrela, não só por o Eito estar localizado no meio da Ribeira do Paúl e por isso estar rodeado de montanhas verdejantes, mas também pelo silêncio e pela água gelada que me arrepiava até os ossos. Vesti-me e dirigi-me de mansinho à cozinha onde finalmente fui apresentada a toda a família e a todos os empregados que mantêm esta casa enorme a funcionar. Fui muito bem recebida, e a minha estadia ali foi encarada com uma naturalidade que eu não esperava encontrar. Sentei-me à mesa do pequeno-almoço, e devo dizer que agora sim, sei qual é o significado real de pequeno-almoço, como o nome indica é um almoço pequeno, e para este clima e para me sentir bem, tem mesmo de ser assim. A mesa estava mais do que recheada de coisas deliciosas… era um verdadeiro banquete, e seria assim todos os dias da minha estadia, porque é assim que normalmente se come por aqui. Digo-vos que nem sei como não engordei… imaginem só comer cachupa guisada com peixe frito, beber café com leite (acabadinho de tirar da vaca) e ainda comer uma belíssima papaia acabada de tirar da árvore… hum… melhor que isto é impossível. Já que estou a falar de comida posso também dizer-vos em que consistem as restantes refeições do dia: ao almoço na mesa tem-se sempre cachupa rica feita na lenha, a melhor que comi até hoje, e são servidos ainda outros pratos para quem quiser variar; ao jantar uma canja bem mais recheada que a canja de Portugal e que se tempera com malagueta… divinal…
Mas continuando com a história desse dia… passámos a manhã toda a preguiçar, à sombra de uma árvore perto do curral, onde podia estar o dia todo a beber Sagres geladinha e ponche de mel (do que melhor que já bebi… acho que já vos tinha dito isto, mas não me canso de repetir…) e a observar bem de perto a Altiva e a Naomi, duas éguas lindíssimas, que não me cansei de mimar. Como era domingo e como há muito pouco para se fazer aqui, alguns residentes desta localidade juntaram-se quase à porta da casa onde fiquei para participar numa competição de jogos tradicionais, a corrida de sacos com alguns espalhanços à mistura, a corrida com uma colher na boca e um ovo nervoso na ponta, que acabou numa autêntica gemada… seguiu-se música, entrega de prémios e muita animação… Mais uma vez lembrei-me de Manteigas (na Serra da Estrela), das minhas brincadeiras e das coisas que os meninos de cidade nunca vão perceber como sabem bem…
Da parte da tarde fomos à boleia numa “Hiace” para o Figueiral… é um sítio que nem sequer vos consigo explicar… é no meio do vale, é verde, muito verde, tem montes de plantações por todo o lado em socalcos perfeitamente talhados nas encostas, tem levadas de água e tanques, onde tomámos banho ao anoitecer… O caminho que fizemos (parte a pé, entre rochas e no leito de um pequeno riacho) foi às escuras, com alguns tropeções à mistura, e bicharada por todo o lado…
Chegados ao Eito, não havia luz… mais tarde percebi que já é habitual porque a Electra não tem feito manutenção dos equipamentos de produção de energia… Aqui já toda a gente se acomodou a ter luz durante apenas algumas horas do dia, mas eu fiquei tão revoltada que só me apetecia fazer queixa da empresa onde trabalho…Como não o posso fazer, decidi passar a mensagem às mais altas instâncias da empresa, passando uma mensagem de preocupação da população e mostrando que situações destas só podem influenciar negativamente a imagem da empresa… se isto alguma vez dará frutos??? Já não estarei cá para ver…
Depois de jantar cedo metemo-nos a caminho pela estrada escura na esperança que alguém nos desse boleia até ao local da festa. Um “aluguer” parou e apesar de estar cheio, ainda nos conseguimos encaixar lá dentro. À medida que ia andando só pensava como teria sido quase impossível para mim fazer aquele percurso enorme a pé às escuras… Finalmente chegámos… a festa era numa discoteca muito pouco convencional. Entrávamos para um pátio onde estavam uns matraquilhos e a entrada para uma mercearia (sim, mercearia, leram bem, a mercearia servia de bar…), e numa espécie de varanda sobre o vale estava a pista da dita discoteca. Duvido que alguns de vocês conseguissem ouvir e ainda menos dançar as músicas que passaram, são daquelas que não me lembro de ouvir aí, mas são músicas que já fazem todo o sentido aqui… e por isso estive a noite toda a dançar até já não sentir mais as pernas… já não dançava com tanto com gosto, tanta vontade, tanto à vontade como o fiz nesta noite… sentia-me entre amigos, sentia-me muito bem, sem inibições e sem problemas por ser das poucas (ou mesmo a única) cara nova que por ali andava… enfim… só posso dizer que adorei.
Mas como tudo o que é bom acaba depressa, tivemos que regressar (pois, mais uma vez, já era tarde), metemos o pé no caminho, mais uma vez sem luz, e com um luar ao melhor estilo Lua-Nova… iam uns tipos à nossa frente com uma lanternita que iluminava pouco mais de um metro de estrada, mas foi o suficiente para detectar o ser mais temível desta ilha, a centopeia… aqui não há cobras e que eu saiba também não há escorpiões nem aranhas venenosas, mas existem montes de centopeias. O bichinho com que nos cruzámos lutou ferozmente até ao fim, contra as inúmeras pisadelas que o tentavam acertar. Aquela coisa era enorme, tinha à vontade uns 15 centímetros de comprimento para uns 3 ou 4 de largura, tem umas patitas que metem respeito e umas “garras” venenosas numa das extremidades do seu corpo de insecto… é medonho… principalmente se pensarmos que se formos picados a reacção do nosso corpo ao veneno não é melhor… não morremos, nada disso, mas segundo me disseram também não se passa lá muito bem depois de uma “dentadinha” do dito.
Mas passado este momento de susto acelerámos o passo e eu rezei para não me cruzar com mais nenhum neste caminho…
Finalmente chegámos ao aconchego do lar… a cama já chamava por mim à horas, e quando me deitei adormeci quase de imediato, num sono profundo, que só o sol que batia na janela deixada aberta, não me deixou continuar…

sábado, setembro 03, 2005

Viagem a Sto Antão - parte 2

O segundo dia no Porto Novo começou bem cedo, é impossível dormir muito com este calor insuportável… Logo pela manhã comemos uma belíssima canja (bem mais rica que a portuguesa), com uma gota de malagueta (uma gota chega para fazer reagir todas as células do corpo…). Saímos para a rua a pensar ingenuamente que seria possível aguentar o calor debaixo de uma qualquer sombra… mas depois de caminhar uns poucos metros na rua principal percebemos que a tarefa era bem mais complicada do que parecia. Arrastava-me pela rua com a máquina fotográfica em punho para tentar tirar algumas fotos de recantos curiosos que tinha observado no dia anterior, mas debaixo do sol abrasador todos os locais de maior interesse rapidamente deixaram de ser assim tão importantes. Foi possível tirar as fotos que procurava, apesar de parar em cada sombra e de me abastecer convenientemente de água fresca.
De regresso à base decidimos pegar nas mochilas e apanhar o “Hiace” para o outro lado da ilha, o calor era tanto que já nem queríamos assistir a mais uma noite de festival. Mas felizmente os planos foram alterados, de um momento para o outro já tínhamos boleia para fazer a travessia para a Ribeira do Paúl, só tínhamos que aguentar mais umas horitas em Porto Novo. O bar Holanda foi o poiso de eleição, mais uma vez… entre batatas fritas, búzio e algumas Sagres (mais uma vez para evitar a desidratação…), lá fomos aguentando até à chegada dos anfitriões que se seguiam.
Desta vez a noite começou cedo, a música continuava razoável e o ambiente no “recinto” era cada vez melhor… em cada paragem bebíamos mais um bocadinho de ponche de mel caseiro do melhor que já bebi, a cada passo na areia tinha que evitar pisar os muitos corpos estendidos vencidos pelo cansaço e pela descomunal bebedeira que já devia durar à cerca de 2 dias. As pessoas sentavam-se e deitavam-se em qualquer lado, algumas até levavam colchões de espuma para por sobre a areia preta, outros caíam para o lado e ficavam estendidos num estado que variava entre o pré-coma e o coma profundo, havia tendas montadas espalhadas pelo areal, barraquinhas de venda de sonhos de peixe e de cerveja já quente. Entre cada grupo musical dançava-se… eu também dancei, ou melhor, tentei aprender a dançar… Este povo nasce já com o ritmo no corpo, e eu aqui sinto-me quase uma tábua dura de madeira que não tem capacidade de vergar…
Deviam ser quase 5 da manhã quando decidimos acabar com a festa e fazer finalmente a viagem para o outro lado da ilha. Numa carrinha de caixa aberta, sentada em cima de uma esteira, atravessei de noite totalmente às escuras a parte mais alta da ilha. Vi uma ilha diferente, comecei a perceber onde estava pelas sombras e pelos cheiros que sentia em cada local. As estrelas lá em cima viam-se com uma nitidez impressionante… o ar fresco da noite arrefeceu os meus pés pela primeira vez desde que cheguei aqui… o céu ia passando de uma preto profundo para um azul de amanhecer… quando iniciámos a descida olhámos para baixo e só se viam nuvens, um cenário difícil de esquecer. Chegámos ao Eito, na Ribeira do Paúl, cerca de 1h30 depois do início da viagem, e finalmente com o céu a querer clarear, fomo-nos deitar. Os dias que se seguiram foram todos passados nesta Ribeira, entre as paisagens mais espectaculares que já puder observar, fui recebida no seio de uma família que jamais poderei esquecer. Nestes dias descansei e fiz o balanço que há já algum tempo precisava fazer. A paz do local, a simpatia das pessoas, a comida maravilhosa, os passeios por trilhos e entre plantações de cana… e a melhor companhia que podia ter nesta viagem…
Definitivamente Sto Antão é a minha ilha de eleição.

sexta-feira, setembro 02, 2005

Mais uma vez Sto Antão - parte 1

Já sei, já sei… estou com o blog desactualizado mais uma vez… mas não é por ter pouca coisa para contar, muito pelo contrário… são tantas coisas, mas tão intensas que me é quase impossível passá-las para simples palavras.
O que tenho vivido aqui nestes últimos tempos tem sido incrível, extraordinário. As palavras que existem no meu dicionário não vão com certeza fazer justiça a tudo o que tenho sentido e vivido aqui.
Ultimamente para conseguir escrever alguma coisa que faça sentido para quem lê de fora, preciso de recorrer às fotografias que tenho tirado, porque se desatasse pura e simplesmente a escrever o que sinto, vocês não iam conseguir perceber nada.
Mas hoje estou decidida, é hoje que vos conto mais um pouco do meu percurso. Aviso já que vou tentar escrever uma espécie de relatório quase formal, pois não quero que ao falar das minhas experiências comece a divagar e a fugir totalmente para o lado sentimental…

Então aqui vai:

O mês de Setembro não podia ter começado melhor… no dia 2 logo pela manhã (às 07:45) decidi fugir do Mindelo e meter-me no barco para a minha ilha de eleição… Sto Antão. Esta ilha tem o poder fantástico de me fazer rejuvenescer e descansar em apenas algumas horas… mas desta vez o calor que se fazia sentir não me estava propriamente a agradar. Depois do costumeiro enjoo e do choque térmico que se deu logo que atracámos no Porto Novo, tive que ir a “correr” com a mochila às costas para um café onde podia recuperar as forças comendo uma belíssima cachupa guisada acompanhada de coca-cola logo pela manhã. Ainda não tinha tomado o pequeno-almoço porque sabia que corria sérios riscos de o ver afundar no oceano durante a viagem, por isso este pequeno-almoço tradicional soube-me que nem ginjas…
Durante toda a manhã andámos pela cidade na busca incessante de sombras e lugares onde corresse alguma brisa, para evitar que fossemos torrados vivos ao sol. Mas esta tarefa torna-se algo complicada quando a cidade toda está localizada na encosta seca da ilha e quando nem uma ligeira brisa corre no ar.
Deambulámos pelo Porto Novo, vimos com atenção a preparação do Festival, as pessoas a montar a barracas de comes e bebes, o porco e a cabra que chegaram vivos de “aluguer” para servir de refeição horas mais tarde, assistimos ao alisamento do areal para servir de recinto ao espectáculo, e à montagem algo tardia do palco.
Ao fim de algumas horas e de várias cervejas e coca-colas (tudo isto para evitar a desidratação…) deixámos as mochilas em casa de uma família amiga local e fomos convidados a comer um magnífico peixe no forno acompanhado de um vinho tinto carrascão muito fresco que me soube pela vida. Tentei durante todo o almoço perceber cada palavra que se trocava em crioulo, devo dizer que já percebo bastante, mas não consigo entender uma palavra quando a conversa começa a acelerar e a meter expressões populares pelo meio… por isso a minha cara de parva durante o almoço foi tão óbvia que a D. Antónia achou que eu estava a julgá-la com o meu olhar cada vez que ela dizia alguma coisa… este mal entendido foi rapidamente ultrapassado comigo a tentar explicar no meu básico crioulo que eu era mesmo “burra” e que só queria perceber do que se estava a falar. Esta tentativa de explicação deu frutos e quando dei por mim já estava a receber uma visita guiada por toda a casa, já andava a ver molduras e álbuns de fotografias de todos os seus filhos e netos, já sabia as histórias de cada um deles e em que país vivem/viveram, nasceram e/ou morreram. Quase que entrei no seio desta família que nem sequer me conhecia, tive a liberdade de falar de tudo um pouco e de aprender muito do que por aqui se sabe e que em Portugal já está esquecido. Posso dizer que reiniciei a minha aprendizagem sobre a simplicidade, pureza e honestidade das pessoas, recomecei a enriquecer com tudo o que me ofereceram e me deram a conhecer. Senti-me tão bem que quando dei por mim estavam a “arrastar-me” para fora daquela casa onde me sentia tão bem… tínhamos que ir… havia ainda muito mais para ver e para fazer… havia um mundo novo, toda uma realidade nova para conhecer. Já não me sentia uma estrangeira, muito menos uma turista, e este sentimento foi aumentando de tom a cada momento que passava, e durante toda esta minha curta viagem senti-me em casa. Antes de sair ainda consegui tirar uma fotografia a uma das mulheres mais bonitas que conheci, a D. Antónia, senhora de idade com uma prol considerável, que achava que por já ser velha não tinha “direito” de ficar bonita nas fotografias, mas que depois de lhe tirar a primeira, me pediu para ficar com ela.
Saímos então desta casa simples mas acolhedora, para ir conhecer uma praia de areia preta com a água límpida e quente, onde um grupo de amigos fazia um pic-nic bem regado com vinho (mais uma vez carrascão) e grogue. Depois de molhar os pés e de comer um peixinho grelhado partimos rapidamente para a “ronda das tascas”, quase em cada esquina parávamos para beber mais uma imperial fresquinha (ou nem por isso) e para comer uns deliciosos pastéis de milho. Ao cair do dia mais uma praia, e enquanto olhava S. Vicente no horizonte ouvia-se ao longe os discursos dos ilustres convidados para a festa de elevação do Porto Novo a cidade. Daqui a uns anos posso dizer que eu estive lá, no dia em que esta vila passou a cidade, no dia em que Cabo Verde ganhou a sua 5ª cidade…
Finalmente, depois de um longo e atribulado dia, parámos para jantar numa das tascas improvisadas no local, o “Holanda”. Esta tasca tem a sua origem no Mindelo, é um dos restaurantes que se encontram na Lajinha, e veio directamente para o festival trazendo consigo uma das figuras mais caricatas que conheci até ao momento, uma rapariga jovem que serve às mesas, super-simpática mas que tem um bigode de fazer inveja a muitos homens que eu conheço. Este “refeitório comunitário” acabou por ser um dos nossos poisos preferidos durante o festival, era aqui que passávamos horas a ouvir boa e má música, onde comíamos os búzios ou os ovos estrelados com batatas fritas embebidas em ketchup e claro sempre acompanhados das cervejas mais frescas que se encontravam no local.
A música que devia começar às 20h estava, como já é costume, atrasada e por isso decidimos ir descansar os ossos para a noite de arromba que se iria seguir. Regressámos ao recinto às 24h o que não foi tarde nem cedo para podermos assistir a praticamente todos os grupos que estavam no programa. Música boa, e as vezes nem por isso, mas sempre melhor do que a que se ouviu no Festival da Baía das Gatas, longas paragens entre cada grupos, momentos de descanso sentados na areia preta molhada pelas ondinhas que banhavam a praia (já vos tinha dito que o recinto era na praia???), no mesmo espaço pessoas que dançavam, pessoas que vendiam bebidas e pessoas que verdadeiramente caíam para o lado “fuscas” de tanto grogue que haviam consumido provavelmente desde manhã. Tentámos em vão aguentar até ao último grupo, mas o corpo pedia descanso e por volta das 5h da manhã decidimos ir dormir antes que o sol resolvesse nascer. A primeira noite do festival estava no fim, mas ainda nos restava mais um dia e uma noite na mais recente cidade de Cabo Verde, e provavelmente uma das cidades mais quentes...